quarta-feira, 11 de abril de 2012

Graça Vilhena


faça de conta
que o amor
é copo d'água
basta-lhe a sede
e não o mar

Graça Vilhena (Teresina) é uma poetisa piauiense participante da “Geração Mimeógrafo” ou “Geração 70", escritora participante dos movimentos culturais dos anos 70 à atualidade.

O GARRAFEIRO / graça vilhena

o garrafeiro era apenas um homem
que sobrava das ruas
também sujo de terra e esquecido
como as garrafas e cacos no quintal

suas mãos de cuidado
tangiam aranhas, lagartixas
e vez por outra
um escorpião afiado

depois arrumava as garrafas
lado a lado
âmbares, azuis, verdes, transparentes,
num arco-íris pobre

"essas são de vinho tinto"
dizia-me ele embriagado de vazios
e as de fundo côncavo serviam
para pescar piabas no Poti

o mundo é duro e frágil, eu aprendia
mas nele lições pequenas eternizam
piabas prateadas nas garrafas
como rutilos presos nos cristais

OUTUBRO

O amor acabou
mas é outubro
e respiro o perfume desse alívio
como se respira os lírios 
e a flor da sapucaia.
O amor acabou
meu coração passeia
por sobre as veias quentes das calçadas
bebendo o sangue dos cinzeiros
se avivando nos pau-darcos.
O amor acabou
mas é outubro
meu coração amadurece doce de sol
nos cajus e mangas-rosas
da cidade.

POEMA COMUM

"A moça do sim entrou no bar
olhou em volta, o coração em flor
enfeitava-lhe os cabelos
cuspiu semente de noites pelos olhos
e preparou a boca ardentemente
para os beijos mudos.

Desapareceu na noite
gargalhou a madrugada
e voltou sozinha na manhã

Tentou encarar seu destino
no ralo da pia
mas o peso da lágrima
foi mais forte
transfigurada
recolheu o coração
murcho de engano
fugiu no sono
e sonhou que vivia."

Maria das Graças Pinheiro Gonçalves Vilhena é formada em Letras pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), tem especialização em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica,PUC/SP. É Professora de Língua Portuguesa. Atualmente, dá aulas no Instituto Dom Barreto, lecionando Literatura Clássica, conhecida por sua rigorosidade e avaliações de alto nível de dificuldade.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

A Moça Velha, a Moça Nova e o Cabeça de Cuia




Edmar Oliveira

Teresina tem fama em todo país de ter as mulheres mais lindas e os homens mais feios. Sorte nossa que elas já estão acostumadas com nossos defeitos. Mas elas são belas e cantadas em todo canto desse imenso Brasil. E a nós fez exigentes com a beleza delas. Fogosos baixinhos esmirradinhos, se achando!  

O símbolo da beleza feminina de Teresina tem 72 anos de beleza e graça, que num por do sol é atravessada pelas cores rubras do ocaso na linha do equador, emoldurando uma pintura surreal, assombreando sua silhueta no leito manso do velho monge. A moça velha carregava a linha férrea atravessando as águas, primeira ponte entre os dois estados, ligando as margens que o rio, como uma longa coluna vertebral, faz a fronteira natural. E bela, quanto mais velha mais bela, ilumina em mim as recordações da minha terra. Não tem Teresina sem a ponte João Luis Ferreira, nome de um governador da terra que foi amigo de Lima Barreto e mereceu dele a dedicatória do Policarpo Quaresma. E o rio Parnaíba é o velho monge, na imagem poética de Da Costa e Silva, nosso simbolista de Amarante. A ponte metálica, como nós a chamávamos carinhosamente, símbolo da cidade e vistoso cartão postal todo ligado à poesia.  


Mas eis que uma moça nova se assanhou por cima do rio Poty, ligando a cidade antiga aos bairros modernos e chiques da zona leste, e vem tomando o lugar da moça velha no coração dos jovens teresinenses. A ponte estaiada, sem um pilar dentro do rio, é sustentada por estaias metálicas que se seguram numa pilastra. No cume dessa pilastra, ligada por elevadores, tem-se a vista da chapada do corisco. A moça nova nos seduz pelo alcance de sua beleza até onde a vista alcança, sem botar o pezinho n’água.

Confesso que as curvas da moça nova tem uma graça singular da beleza de juventude. Rebola com graça e sensualidade atirando-se de um lado a outro do outro rio dessa cidade, que tem no encontro das águas a lenda trágica do Cabeça de Cuia. A lenda matricida do Cabeça de Cuia é nossa: Crispim, o pescador desesperado dos rios, por não encontrar neles os peixes desejados mata a mãe com um osso de boi servido com água na sopa rala por falta de tudo. A mãe, antes de morrer joga uma praga: ele vagaria como um monstro nas águas, com uma cabeça enorme a boiar, até devorar sete virgens de nome Maria. A moça nova nem bota o pezinho n’água, com medo do Cabeça de Cuia.  

 A cidade ficou encantada com a moça nova e esqueceu da moça velha. Há muito tempo tiraram o trem dos seus trilhos. Asfaltaram seu chão de dormentes de madeira e fizeram semáforos de lado e outro da ponte, pois ela só permite um carro por vez. Li agora, entristecido, que os semáforos queimaram e nenhuma autoridade se responsabiliza pela manutenção da ponte metálica. Interrompeu-se o trafico, abandonaram a moça velha que chora pedaços metálicos enferrujados no rio Parnaíba.

Embora a moça velha esteja com os pés dentro da água, nem o Cabeça de Cuia a quer mais. Ela não é mais virgem. E eu choro pela minha moça velha, ainda tão bonita, apesar de maltratada. 

Edmar Oliveira - Médico psiquiatra, ex-diretor do Instituto Municipal Nise da Silveira (Rio de Janeiro), autor de Ouvindo Vozes e Von Meduna, ambos sobre a prática em saúde mental. Blogueiro do Piauínauta